Note: I'm still working on the english translation, please use a translator for now. Sorry for the inconvenience.Lucas Rattz, 2025-10-19
Contra a Propriedade Intelectual
Introdução
Quem inventou o avião?
A não ser que você seja Brasileiro ou um entusiasta da história da aviação francesa, provavelmente responderia: os Irmãos Wright.
Essa é uma resposta válida, mas a história é mais complexa, e revela muito sobre como patentes e propriedade intelectual moldam e atrasam o progresso humano. Meu xará Alberto Santos-Dumont acreditava que a aviação deveria beneficiar a humanidade. Ele realizou o primeiro voo público e não assistido do mundo em 1906, recebendo reconhecimento imediato[1]. Três anos antes, portanto, dos voos públicos que conferiram aos Wright atenção internacional.
Santos-Dumont nunca reivindicou patentes sobre o 14-bis ou seus sistemas de voo. Se tivesse, é provável que hoje a invenção do avião fosse atribuída a ele em vez de aos Wright.
Na aurora da aviação, a Europa, livre de disputas legais, avançou rapidamente, enquanto os Estados Unidos ficaram paralisados por litígios de patentes movidos pelos irmãos Wright, até que o governo interveio às vésperas da Primeira Guerra Mundial para acelerar o desenvolvimento[2].
Este episódio ilustra de maneira emblemática como o sistema de propriedade intelectual, que deveria estimular inovação e proteger criadores, na prática retarda o progresso e contribui com a desigualdade social e econômica. Neste texto, analisaremos o tema sob cinco prismas: lógico, ético, econômico, prático e epistemológico, demonstrando que o conceito de propriedade intelectual apresenta falhas estruturais profundas.
Argumento Lógico
A definição de propriedade varia de acordo com o campo do conhecimento em que ela está sendo tratada; as definições de propriedade perante à ciência são diferentes (mas não necessariamente excludentes) daquelas usadas pelo direito e pela filosofia, por exemplo. Entretanto pode-se dizer que a ideia por trás da palavra mantém-se relativamente constante.
Para evitar confusão semântica esta seção adotará uma forma mais essencial do conceito, que necessita de menor quantidade de suposições e que se volta para a lógica matemática em vez de conceitos subjetivos:
Diz-se que um objeto escasso y é propriedade de um agente x quando x exerce controle primário e exclusivo sobre y e decide sobre seu uso, destino e transferência.
Seguindo essa definição, um indivíduo pode ser proprietário de um carro: enquanto ele dirige o carro no trajeto até o trabalho, este mesmo carro não pode estar sendo dirigido por outra pessoa para ir ao parque (controle físico exclusivo). O proprietário pode emprestá-lo ou vendê-lo (transferindo a propriedade à outro indivíduo), mas enquanto estiver fazendo uso material do carro, outro indivíduo não pode fazê-lo enquanto respeita as leis da física. Outros indivíduos podem ser proprietários de carros do mesmo modelo, mas não se trata do mesmo objeto.
De acordo com essa mesma definição, um indivíduo não pode ser proprietário da luz solar. Nenhum indivíduo decide quando fará sol (ou seja, detém controle), e não há nada que possa conferir esta capacidade a alguém, ao menos no momento da escrita deste texto. Ademais, a luz solar é intrinsecamente um bem não escasso no sentido relevante: mesmo que não seja tecnicamente infinito, sua oferta é virtualmente ilimitada na sociedade atual (definida como "bem livre" no estudo da economia[3]) e pode ser alvo de uso simultâneo por mais de um agente.
E quanto à propriedade intelectual? Bem, fundamentalmente as leis de propriedade intelectual visam proteger ideias ("produtos intangíveis da criatividade humana"[4]) e obras criativas. Mas ao aplicar a mesma lógica dos exemplos acima a estes objetos, rapidamente surgem incongruências severas.
Primeiro, não é possível conferir controle exclusivo de uma ideia a um indivíduo. Tomemos como objeto exemplo o presente texto: outra pessoa, do outro lado do mundo, pode pensar e escrever as exatas mesmas palavras que eu escrevo neste momento[5]. Não há impedimento físico, como ocorre com um carro. O mesmo pode ser dito de processos fabris: duas fábricas podem conceber um mesmo processo para fabricação de um produto simultaneamente.
A não-exclusividade pode ser constatada para qualquer objeto protegido por legislações de propriedade intelectual, devido às próprias definições.
Continuando, nenhum bem protegido por "propriedade intelectual" é escasso. Assim como o ar e o céu aberto, ideias são virtualmente infinitas. Enquanto existirem seres pensantes, uma mesma ideia pode surgir repetidas vezes. Newton e Leibniz desenvolveram o cálculo de forma independente. Edison e Swan inventaram a lâmpada incandescente sem saber um dos experimentos do outro.
Embora leis de propriedade intelectual criem uma forma artificial de exclusividade, isso não altera a natureza do objeto: ideias não são escassas e podem ser usadas simultaneamente por múltiplos indivíduos. Portanto, qualquer tentativa de transformá-las em propriedade viola os critérios lógicos de escassez e controle, que fundamentam a legitimidade da propriedade em contextos físicos e materiais, mas não podem ser aplicados a objetos intangíveis.
A esta altura, torna-se evidente que a ideia de propriedade sobre ideias é incoerente dos pontos de vista lógico e físico.
Argumento Ético
A ideia de propriedade intelectual se choca diretamente com princípios fundamentais de ética e justiça social. Em sua essência, ela transforma conhecimento, um bem naturalmente compartilhável e expansível, em instrumento de exclusão.
Uma justificativa comumente empregada para sua defesa é que a existência da propriedade intelectual "promove o progresso da ciência e artes úteis"[6]. A história de Santos-Dumont na introdução deste texto é um contraexemplo fático a essa afirmação: enquanto Santos-Dumont compartilhou abertamente suas inovações, permitindo que a aviação florescesse na Europa, os Estados Unidos ficaram paralisados por litígios de patentes.
O mesmo fenômeno é observado em diversas outras indústrias. Um dos casos mais ilustres é o da invenção do telefone, quando em 1876 Alexander Graham Bell e Elisha Gray apresentaram patentes semelhantes com diferença de poucas horas, dando início a uma disputa entre os dois. A vitória foi concedida à Bell, e o que se sucedeu foi um monopólio que bloqueou inovações de outras empresas por mais de 20 anos, retardando drasticamente a evolução das telecomunicações até que as patentes expirassem no início do século XX[7].
Portanto, a falácia de que a propriedade intelectual estimula o desenvolvimento tecnológico trata-se de um non sequitur. O que acontece na prática é o inverso: a humanidade tem seu progresso tolhido em decorrência das leis de patente e outras ramificações da propriedade intelectual.
Outra ideia sedutora que apoia a propriedade intelectual é a de que "proteger ideias é recompensar a criatividade". À primeira vista, pode parecer justo: quem cria algo útil deveria colher algum benefício. Mas, mesmo que a propriedade intelectual fosse logicamente válida, essa justificativa cai por terra assim que se analisa quem realmente é beneficiado e quem paga o preço.
A imensa maioria dos detentores de patentes e direitos autorais não são criadores, mas corporações[8]. Um músico raramente detém os direitos plenos sobre sua obra; um cientista dificilmente controla as patentes resultantes de sua pesquisa. O sistema foi desenhado não para proteger o criador, mas para centralizar poder econômico sob um verniz de proteção da criatividade. E essa é sua natureza desde o ventre: criado no século XV, o Estatuto de Patentes de Veneza pode ser considarado a primeira manifestação do conceito moderno de propriedade intelectual, e tinha como objetivo fortalecer a dominância de Veneza sobre outras cidades-estado à época[9].
Ainda pior é o efeito da propriedade intelectual sobre remédios essenciais. A insulina, descoberta há mais de um século, continua inacessível para muitos; não por escassez real, mas por escassez fabricada, contribuindo para a morte de milhões de pessoas[10]. O mesmo ocorre com antirretrovirais e vacinas[11]: tecnologias que poderiam salvar incontáveis vidas são retidas, controladas e racionadas, e de alguma forma fomos convencidos a acreditar que isso é justiça.
A perversão ética da propriedade intelectual estende-se também à agricultura. Empresas como a Monsanto criaram sistemas de dependência forçada ao patentear sementes geneticamente modificadas e processar agricultores que, por meios naturais e por vezes de forma não intencional, acabam reutilizando-as[12]. O que antes era o ciclo natural da vida tornou-se violação de patente; conceito este que que fundamentalmente pode ser encarado como a criminalização da própria natureza.
Também deve ser destacado o impacto no acesso à cultura e à educação. Leis de copyright impedem o acesso livre a obras de literatura, cinema e música, frequentemente por décadas após a morte de seus autores. O conhecimento, que deveria ser acumulativo e difusor do progresso, é transformado em bem escasso e caro. Universidades e estudantes enfrentam barreiras impostas por empresas editoriais que detêm direitos sobre publicações científicas que, ironicamente, são produzidas com financiamento público.
Por fim, a propriedade intelectual sustenta um medo irracional de "roubo" da produção criativa. Muitos acreditam que, sem copyright, obras seriam apropriadas indevidamente e seus criadores privados de reconhecimento. Na prática, isso não acontece. Obras em domínio público continuam sendo atribuídas a seus autores originais: todos sabem que Da Vinci pintou a Mona Lisa e Miguel de Cervantes escreveu Don Quixote, mesmo sem proteção legal à época. Exemplos contemporâneos, como o livro All Tomorrows, mostram que é possível distribuir conteúdo livremente sem que a autoria seja questionada. Assim, o copyright cria barreiras éticas desnecessárias, impedindo acesso à cultura sem realmente proteger o criador.
Em todos esses casos, o mesmo princípio ético é violado: o da partilha do que é, por natureza, não excludente. E sob essa ótica, a propriedade intelectual é indefensável.
Argumento Prático
A aplicação das leis de propriedade intelectual na sociedade contemporânea não é apenas falha; é praticamente impossível. O conceito de exclusividade, herdado de um mundo físico e escasso, entra em colapso diante da natureza do digital, onde a cópia é inerente, instantânea e sem custo. Cada nova tentativa de "proteger" a propriedade intelectual exige sacrificar um pouco mais da privacidade e da liberdade individual.
Sistemas de DRM (Gerenciamento de Direitos Digitais) quebram a posse real dos bens adquiridos: você **compra** um filme ou um jogo, mas **não o possui**; o fornecedor pode roubar seu acesso sem aviso prévio[13]. A DMCA (Lei dos Direitos Autorais do Milênio Digital) e legislações equivalentes transformam ferramentas neutras como protocolos de compartilhamento e repositórios de código em campo minado jurídico. Inúmeros projetos legítimos já foram derrubados sob alegações de "violação" automatizadas[14][15].
Pior: o modelo atual exige vigilância contínua e global, na qual todo usuário é presumido culpado até provar em contrário. Plataformas assumem os papéis de promotor, juíz e juri, removendo conteúdos com base em algoritmos de detecção. A fronteira entre defesa de direitos e censura tornou-se indistinguível.
Quanto mais se tenta "proteger" a propriedade intelectual, mais se destrói a própria base sobre a qual a cultura digital floresce: a liberdade de copiar, remixar, aprender e compartilhar.
E há ainda um absurdo mais fundamental. Todo conteúdo digital se resume, em última instância, a sequências de uns e zeros; representações numéricas da informação. Se a propriedade intelectual se aplica a conteúdo digital, a conclusão lógica é que **se está reivindicando propriedade sobre sequências numéricas**. Por essa lógica, seria igualmente válido patentear constantes matemáticas como Pi ou o número de Euler. Em 2020, músicos demonstraram o extremo dessa contradição ao gerar e registrar todas as melodias possíveis no sistema musical ocidental[16]. Bilhões de combinações matematicamente finitas, agora sob copyright. O experimento não criou arte; apenas expôs a falácia da ideia de exclusividade numérica.
Argumento Econômico
Por trás da retórica moral e cultural, a razão maior da existência de leis de propriedade intelectual é econômica. As narrativas sustentam que a proteção contra cópias garante incentivo financeiro necessário para fomento da criação. Mas a própria evidência empírica desmente essa premissa.
Em estudo encomendado pela União Europeia conclui-se, após detalhada análise sobre o impacto da pirataria em diferentes setores do entretenimento, que não apenas não há correlação significativa entre a violação de direitos autorais e perdas econômicas para a indústria, como em alguns casos, notavelmente no setor de jogos digitais, a correlação é positiva: o consumo de cópias não autorizadas aumenta a visibilidade e, consequentemente, as vendas legais[17].
Apesar de concluído em 2015, o estudo foi mantido sob sigilo até 2017 por contrariar a narrativa vigente sobre os "danos" advindos da pirataria. Não fosse pela insistência de uma jornalista filiada ao Partido Pirata, é provável que o estudo estivesse retido até hoje. Mesmo após a publicação, o relatório foi deliberadamente distorcido: há enfoque em aspectos pouco relevantes enquanto as partes que refutam a narrativa oficial foram omitidas de comunicados públicos numa tentativa de moldar o debate econômico. Entretanto, as mais de 300 páginas do estudo estão disponíveis na íntegra, escancarando as reais conclusões.
O mesmo padrão se repete em outros setores. A indústria de software livre e open source cresce de forma explosiva sem depender de copyright rígido, formando parte essencial da infraestrutura digital global e movimentando bilhões de dólares anualmente[18][19]. Sistemas operacionais, bancos de dados e outros softwares ubíquos são desenvolvidos de forma colaborativa, sem o aparato de exclusividade que o copyright impõe.
Enquanto isso, o setor de streaming ilustra o colapso lógico da propriedade intelectual: um oligopólio de plataformas gerado por escassez artificial em um ambiente em que a escassez não deveria existir. Trata-se de um modelo que viola princípios básicos da economia digital, onde o custo marginal de reprodução é praticamente zero. O resultado é um mercado aberrante que incentiva a piora na qualidade do serviço: séries e filmes desaparecem, catálogos se fragmentam, e o consumidor paga cada vez mais para acessar cada vez menos. O monopólio informacional, aqui, não cria valor: ele destrói.
Além disso, as descobertas científicas, tecnológicas e médicas que sustentam indústrias inteiras são, em sua maioria, financiadas por universidades públicas e subsídios estatais[20], mas seus resultados são protegidos por patentes e monopólios. Ou seja, o custo da inovação é amplamente socializado, mas o lucro é privatizado. A sociedade paga pelo risco e pela pesquisa, e paga novamente para colher seus frutos.
O fenômeno dos "patent trolls" revela o lado parasitário da propriedade intelectual. Empresas que não produzem absolutamente nada lucram exclusivamente processando quem de fato inova. Estudos estimam que esses litígios custam dezenas de bilhões de dólares por ano à economia dos EUA, drenando recursos que poderiam ser investidos em pesquisa real[21].
Em suma, o balanço econômico da propriedade intelectual é negativo. Longe de estimular a inovação, as leis de propriedade intelectual causam prejuízo líquido (net loss) para a sociedade.
Argumento Epistemológico
A origem social do conhecimento:
- Toda criação deriva de conhecimento prévio. Ninguém cria ex nihilo.
- O inventor, o artista e o cientista não operam no vácuo, mas sobre um corpo de conhecimento socialmente construído.
- Logo, se cada nova criação é tributária de outras, reivindicar exclusividade sobre ela é, em essência, reivindicar exclusividade sobre o conhecimento coletivo.
A contradição ontológica do conhecimento como propriedade:
- Conhecimento só existe ao ser compartilhado. Um segredo é apenas informação isolada; conhecimento potencial, não realizado.
- O "direito de exclusão" que fundamenta a propriedade intelectual nega essa natureza difusiva, expansiva e cumulativa. Tenta tornar escasso o que, por definição, se expande ao ser compreendido.
- Logo, proibir a cópia, o ensino ou o aprimoramento de uma ideia é uma forma de aniquilar o próprio objeto que se pretende proteger.
A conclusão: propriedade intelectual não é apenas injusta ou ineficiente. É uma impossibilidade conceitual.